publicado em 16/05/2022
Por José Luiz Mansur Junior
Advogado Criminalista, Mestre e Doutorando em Direito
Ao contrário do que muita gente pensa, o crime de tráfico ilícito de drogas, ao lado dos crimes de tortura e terrorismo, nunca foi propriamente um crime hediondo. Isso porque a Constituição Federal de 1988, ao dispor em seu art. 5º, inciso XLIII, sobre determinadas restrições a serem posteriormente implementadas pelo legislador infraconstitucional, mais especificamente a inafiançabilidade e a insuscetibilidade de anistia e graça, optou por tratá-los de forma conceitualmente distinta, a saber: “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”.
Nasceu, assim, doutrinariamente o conceito de “crime hediondo equiparado” (ou “crime hediondo por equiparação”), expressão que passou a designar os crimes de tráfico ilícito de drogas, terrorismo e tortura.
Por força da referida opção constitucional, a Lei de Crimes Hediondos (Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990) também excluiu os crimes de tráfico de drogas, tortura e terrorismo do rol conceitual dos crimes hediondos, previsto taxativamente em seu art. 1º. Em relação às restrições, no entanto, a Lei de Crimes Hediondos os equiparou, dispondo originalmente em seu art. 2º que os crimes hediondos, a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo seriam insuscetíveis de anistia, graça e indulto (modalidades de perdão), de fiança e de liberdade provisória (incisos I e II), bem como que suas penas seriam cumpridas integralmente em regime fechado (§1º, do art. 2º).
Posteriormente, a Lei nº 8.072/1990 acabou sofrendo inúmeras alterações. Dentre as mudanças mais importantes, a progressão de regimes passou a ser permitida após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, para os apenados primários, e de 3/5 (três quintos) da pena, para os reincidentes (art. 2º, §2º). Tal alteração foi introduzida pela Lei nº 11.464/2007, adaptando a Lei de Crimes Hediondos à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que interpretando o princípio da individualização da pena (art. 5º, XLVI, da CF/88), havia reconhecido anteriormente a inconstitucionalidade do §1º, do art. 2º, da Lei nº 8.072/1990 (vide HC/STF nº 82.959 e Súmula Vinculante nº 26).
Assim, a partir do início da vigência da Lei nº 11.464/2007, o sistema brasileiro de progressão de regimes prisionais passou a contar com duas situações distintas: a progressão de regimes para crimes comuns (não hediondos), com o cumprimento mínimo de 1/6 (um sexto) da pena no regime anterior (art. 112, da Lei de Execução Penal), e a progressão de pena para crimes hediondos e hediondos por equiparação (tráfico de drogas, tortura e terrorismo), com o cumprimento mínimo de 2/5 (dois quintos) da pena no regime anterior, para os primários, e 3/5 (três quintos) para os reincidentes (art. 2º, §2º, da Lei nº 8.072/1990, alterado pela Lei nº 11.464/2007), não se exigindo, todavia, reincidência específica (reincidência pela prática de outro crime hediondo).
O sistema jurídico, entretanto, não é estático.
Dessa forma, há pouco mais de dois anos, o legislador infraconstitucional, por meio do chamado Pacote Anticrime, capitaneado pela Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, optou, dentre outras inovações e aprimoramentos, por aperfeiçoar o sistema de progressão de penas brasileiro.
Para tanto, a Lei nº 13.964/2019 revogou o §2º, do art. 2º, da Lei de Crimes Hediondos, que, como visto, dispunha sobre a progressão de regimes para condenados por crimes hediondos, tráfico de drogas, terrorismo e tortura, bem como alterou o art. 112, da Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984), de forma a distinguir oito hipóteses diferentes de progressão, sendo quatro para crimes comuns e quatro para crimes hediondos ou hediondos por equiparação.
Para crimes comuns praticados sem violência à pessoa ou grave ameaça (ex: furto), a Lei de Execução Penal passou a exigir o cumprimento de 16% da pena para apenados primários e 20% para reincidentes; e para crimes comuns praticados com violência à pessoa ou grave ameaça (ex: roubo e extorsão), o cumprimento de 25% da pena para apenados primários e 30% para reincidentes.
Já para os crimes hediondos ou “equiparados”, a Lei de Execução Penal passou a exigir o cumprimento de 40% da pena para apenados primários e condenados por crimes sem resultado morte; 50% da pena para apenados primários e condenados por crimes com resultado morte, vedado o livramento condicional (dentre outras hipóteses previstas no art. 112, VI, da LEP); 60% da pena para apenados reincidentes na prática de crime hediondo ou equiparado e condenados por crimes sem resultado morte; e, finalmente, 70% da pena para apenados reincidentes na prática de crime hediondo ou equiparado e condenados por crimes praticados com resultado morte, vedado o livramento condicional.
De se observar, todavia, que o legislador responsável pelo novo texto do art. 112, da Lei de Execução Penal, deixou de lado a tradicional técnica inaugurada pela Constituição de 1988, de mencionar expressamente os crimes de tráfico ilícito de drogas, terrorismo e tortura quando do tratamento extensivo de qualquer restrição imposta aos crimes hediondos, preferindo a utilização do termo genérico “equiparados”.
Surgiu, então, uma nova tese jurídica, no sentido de que os crimes de tortura (Lei nº 9.455/1997), de terrorismo (Lei nº 13.260/2016) e especialmente de tráfico ilícito de drogas (Lei nº 11.343/2016), não seriam mais equiparados pela lei aos crimes hediondos para efeito de progressão de regimes, pois a Lei nº 8.072/90 teve o §2º, de seu art. 2º, revogado pelo Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/2019), não havendo mais dispositivo legal que equipare, para fins de progressão de regimes, o tráfico ilícito de drogas, o terrorismo e a tortura aos crimes hediondos, de forma que, ao menos para este fim, a expressão crimes hediondos por equiparação não mais os abrangeria (teria sido “esvaziada”), permitindo, assim, a progressão de regimes após o cumprimento dos lapsos mínimos de pena exigidos dos apenados por crimes comuns, ou seja, para crimes praticados sem violência à pessoa ou grave ameaça, 16% para primários e 20% para reincidentes; e para crimes praticados com violência à pessoa ou grave ameaça, 25% para primários e 30% para reincidentes.
Obviamente, a reação imediata dos órgãos jurisdicionais (juízes e tribunais) tem sido a de rechaçar a referida interpretação, invocando, como fundamento, o preceito constitucional que originalmente equiparou o tráfico de drogas, o terrorismo e a tortura aos crimes hediondos para fins de inafiançabilidade e insuscetibilidade de anistia e graça (art. 5º, XLIII, da CF/88). A partir do referido dispositivo constitucional, interpretam sistematicamente a nova redação do art. 112, da Lei de Execução Penal, em conjunto com art. 2º, I e II, da Lei nº 8.072/90, de forma a não excluir tais crimes das hipóteses de progressão especialmente criadas para os crimes hediondos. A exceção seria o crime de tráfico privilegiado, previsto no art. 33, §4º, da Lei nº 11.343/2006, em razão do disposto no novo §5º, do art. 112, da Lei de Execução Penal.
Nesse sentido: “PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO. CONDENAÇÃO POR TRÁFICO DE DROGAS COMUM (ART. 33, CAPUT, DA LEI Nº 11.343/2006). DELITO EQUIPARADO A HEDIONDO. INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO ORDENAMENTO JURÍDICO. ART. 5º, XLIII, DA CONSTITUIÇÃO, C/C ART. 2º, I E II DA LEI N. 8072/90. LEI 13.964/2019. INOVAÇÃO LEGISLATIVA QUE NÃO SUPRIME A EQUIPARAÇÃO DO TRÁFICO DE DROGAS NA MODALIDADE NÃO PRIVILEGIADA AOS CRIMES HEDIONDOS. PROGRESSÃO DE REGIME. APLICAÇÃO DO PERCENTUAL DE 40%, REINCIDENTE NÃO ESPECÍFICO. POSSIBILIDADE. ART. 112 DA LEP. ANALOGIA IN BONAN PARTE. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. [...] não se pode concluir que, por força da alteração legislativa em questão, o ordenamento jurídico tenha deixado de considerar o tráfico comum (art. 33, caput, da Lei n. 11.343/2006) como crime equiparado a hediondo, sob pena de se desprestigiar a interpretação sistemática da legislação vigente (art. 5º, XLIII, da CF, c/c art. 2º, I e II, da Lei n. 8.072/90). (STJ, AgRg no HC 729256/SP, 6º TURMA, Relator Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, j. 26/04/2022, Dje 02/05/2022).
Não se deve perder de vista, entretanto, que o art. 5º, da Constituição Federal, ao tratar de direitos e deveres individuais e coletivos, o faz de forma a limitar o exercício abusivo do poder estatal. Dessa forma, o inciso XLIII, que impõe a inafiançabilidade e a insuscetibilidade de anistia e graça aos crimes hediondos e aos crimes de tráfico de drogas, terrorismo e tortura deve ser interpretado restritivamente, o que impossibilitaria a mencionada interpretação sistemática, posto que extensiva.
Trata-se de uma posição garantista e que dificilmente prevalecerá nos tribunais superiores. Por hora, cumpre apenas destacar a existência de algumas decisões regionais a favor da nova tese e, em especial, de uma liminar em Habeas Corpus recentemente deferida pelo Ministro Sebastião Reis Júnior, da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, acatando a tese de que crime de tráfico de drogas não poderia mais ser equiparado a crime hediondo por conta da revogação do §2º, do art. 2º, da Lei nº 8.072/1990, pela Lei nº 13.964/2019 (STJ, HC 736.333/SP, 5ª TURMA, j. 22/04/2022).